Há 70 Anos
Estamos em meados do ano de
1942.
A Segunda Grande Guerra
Mundial que começou em Setembro de 1939 está no auge. Em aliança, alemães,
italianos e japoneses, formam o chamado
“Eixo” que representa o Nazi-fascismo. As tropas do exército alemão estão agora
em força empenhadas na ocupação da União Soviética e já ocuparam parte dos
países da Europa. A Espanha, com a sua liberdade esmagada em 1939, está
arrasada por uma revolução brutal que deu lugar à ditadura de Franco.
Também por cá
temos idêntico regime chefiado por Salazar. Está organizada a Polícia Política
com seus bufos e lambe botas. A Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa,
formadas obrigatoriamente por funcionários públicos e estudantes, são
organizações para militares. A par disto, também alguns patrões menos
escrupulosos e os grandes monopolistas fazem questão em que os seus empregados
façam parte de alguma destas organizações. Vivemos num verdadeiro clima de
ditadura que teima em perseguir quem se lhe oponha. As pessoas não se abrem em
opiniões que não estejam em sintonia com a situação vigente, sabendo que ali ao
seu lado pode estar um bufo que o irá denunciar à Polícia de Vigilância e
Defesa do Estado “PVDE”. Isto acontece tanto no seu local de trabalho como no
café ou na taberna que habitualmente frequenta, podendo o bufo ser tanto o
empregado que o serve, como o engraxador que está a limpar-lhe os sapatos, o
cauteleiro que vem vender-lhe uma cautela para a lotaria, ou alguém que ali
está na mesa ao lado ou, até mesmo, um vizinho que se diz nosso amigo.
Impera o analfabetismo. Vive-se
numa grande pobreza e é normal verem-se pessoas descalças nas ruas, muitas pedindo
esmola, assim como cegos tocando violino, bandolim, saxofone ou outro
instrumento, com a caixa das esmolas pendurada ao pescoço por uma correia sendo
por vezes acompanhados por alguém que canta uma cantiga que relata uma desgraça
acontecida recentemente e depois vende, a quem por ali passa, os versos
impressos num folheto. Também há os pedintes já duma certa idade e doentes, que
aparecem a um dia fixo da semana pedindo de porta em porta e que se tornam às
vezes um pouco íntimos de quem os recebe e que deixam alguma saudade no dia em
que, para sempre, deixam de aparecer.
Muitas empresas fabris não têm
refeitórios para todos os operários e à hora do almoço vêem-se estes a comer na
rua sentados nos passeios ou num sítio mais recatado, muitas vezes acompanhados
das suas companheiras ou de outro familiar, talvez uma filha, que lhes vai
levar o almoço. Também há quem vá à taberna comer o almoço que traz de casa a
troco da compra do vinho muitas vezes “baptizado”, comprado ao taberneiro.
O fato de ganga para o
trabalho é quase sempre usado todo o dia, pois o fatinho melhor está guardado
para o domingo.
Qualquer patrão pode despedir
um empregado quando entender sem que ao menos tenha que lhe dar um aviso prévio.
Os melhores empregos são
conseguidos nos Bancos ou Companhias de Seguros. Também os empregos públicos
são preferidos por serem mais estáveis e pela reforma ao fim duma vida de
trabalho, mas com o inconveniente de ter que se fazer parte da Legião
Portuguesa, o que por vezes é motivo de recusa por parte dos trabalhadores mais
conscientes.
Quem adoecer tem que chamar um
médico a casa ou vai ao seu consultório, a quem tem que pagar a consulta e é
tratado sempre por tu seja qual for a sua idade. Em caso de necessidade de
internamento hospitalar, é necessário pagar uma caução de quinze dias depois de
ser calculada a importância, após interrogatório onde se quer saber o ordenado
do chefe de família, o agregado familiar, a renda de casa, etc.
Vamos comprar à mercearia um
quilo de batatas ou uma posta de bacalhau demolhado ou uma quarta de manteiga
ou duzentos gramas de açúcar, cem gramas de marmelada ou de banha. Ao leiteiro
compramos um litro de leite que vem vender-nos à porta, às vezes acrescentado
com urina que se diz não ser detectável nas análises da fiscalização que também
é muito deficiente. Na padaria compramos um quilo de pão de segunda e voltamos
para casa comendo o contrapeso pelo caminho. No talho compramos um naco de
torresmos, duzentos gramas de carne para cozer que muitas vezes é pesada com a
ajuda do dedo do talhante, um pouco de carne entremeada, um chouriço de carne,
uma morcela, um pouco de toucinho e uma farinheira. No lugar da hortaliça a
couve portuguesa, uma cabeça de nabos, dois tostões de cenouras e um raminho de
salsa que a dona do lugar nos oferece e com aquilo que comprámos no talho ficam
os ingredientes para o cozido à portuguesa que aqueles, um pouco mais
afortunados, fazem para o almoço de domingo. Tudo é comprado em pequenas
quantidades e quem ganha é o merceeiro ou o talhante porque tudo é embrulhado
em papel, muito mais barato que o artigo que nele foi embrulhado e posto na
balança, mas como a despesa é apontada no rol para ser paga quando for
possível, as pessoas, reféns do favor feito, aceitam ser defraudadas ou nem
sequer se apercebem disso. Na praça do peixe compramos um par de chicharros ou na
lota estamos à espera que o pescador nos dê umas sardinhas que pomos dentro
duma alcofa ou mesmo dentro da boina que tiramos da cabeça e ficamos a aguardar
nova oferta até que julgamos suficiente para o almoço que será preparado em
casa. Ainda temos as senhas de racionamento para os géneros de primeira necessidade
como pão, azeite, manteiga, etc. Cozinhamos a petróleo ou a carvão que também
são racionados e, do cisco do carvão, que aproveitamos para que nada se
desperdice, misturado com greda que vamos apanhar ao campo e com a ajuda de
água, fazemos a massa que dará aquilo a que chamamos bolas feitas com auxílio
duma argola de ferro diâmetro + - 80 mm x 20mm, que é a forma que se enche e
calca batendo com uma palmatória geralmente de ferro para que fiquem bem
compactadas e servem, depois de secas geralmente ao sol, para pôr no fogareiro
à volta do carvão e assim obtemos melhor calor para a confecção dos alimentos.
Também cozinhamos com
fogareiros a serradura amassada com água e metida dentro duma lata vazia de
cinco litros, à qual fizemos um furo lateral junto à base
aí a dois dedos do fundo, com diâmetro mais ou menos trinta milímetros e
enfiamos por aí um rolo de madeira que se irá encontrar com outro que é posto
dentro da lata na vertical e ao centro da mesma e ambos se retiram quando a
serradura, que tivemos o cuidado de calcar muito bem, está seca. Agora, temos o
fogareiro pronto a ser aceso pelo furo transversal, que irá queimando
lentamente a serradura de baixo para cima e irá servir durante grande parte do
dia para cozinhar os alimentos e entretanto preparamos outro fogareiro para
estar seco no dia seguinte.
Muitas das nossas casas são
iluminadas com candeeiros a petróleo.
Como não temos casa de banho
equipada com banheira para o banho semanal, temos que nos lavar por partes:
primeiro da cintura para cima, depois o resto do tronco e por fim os pés e
pernas, muitas vezes com água fria, ou então, numa banheira geralmente redonda
feita em chapa de zinco que foi colocada numa divisão da casa para aquela
ocasião aquecendo a água dentro de panelas grandes. O banho é tomado à tardinha
de sábado para os filhos da casa, que depois são metidos na cama e a mãe
carinhosa lhes irá levar o jantar quando for hora.
Nas Associações Recreativas,
formadas com o advento da República, se sente a repressão na organização de
Bibliotecas, Grupos Cénicos e outras iniciativas culturais. Todas as
publicações, tais como jornais, revistas ou livros e também todas as formas de
teatro, são censuradas: logo se compreende as dificuldades que essas
Associações encontram para levar por diante os seus objectivos que são a
difusão da cultura. Com frequência acontece que as peças de teatro prontas a
serem representadas e que previamente foram enviadas obrigatoriamente à
Comissão de Censura para aprovação, serem devolvidas com palavras, frases ou
parágrafos eliminados com o lápis azul da Censura ou pura e simplesmente com o
carimbo vermelho de “Proibido pela Comissão de Censura”. As bibliotecas recebem
com alguma frequência a visita dos “censores” que proíbem que tal ou tal livro
esteja em exibição, tendo que se reservar uma estante ou parte dela onde esses
livros estão encerrados de modo inviolável com o indicativo da “Comissão de
Censura”, ou são levados e deixamos de saber o seu paradeiro.
Mas há também quem não aceite
tal estado de coisas. O movimento grevista surge nas grandes empresas tais como
Companhia Carris de Ferro de Lisboa ou Companhia União Fabril. Também as
varinas em Lisboa organizam uma grande manifestação de protesto contra o
regime. Nos campos também se sente a revolta social com grandes movimentações
reivindicando o fim do trabalho de sol a sol e por melhores salários. A
repressão é violenta. Muitos trabalhadores são presos e aqueles considerados
lideres, proibidos de voltar aos seus empregos ou são deportados para o Campo de
Concentração do Tarrafal em Cabo Verde onde já estão outros antifascistas na
sua maioria comunistas e os revoltosos marinheiros dos navios de guerra Dão,
Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque num total de 60, de entre os quais o
Joaquim Casquinha filho de Paço de Arcos.
João do Carmo